Renegociar a dívida – defender o Povo, defender o País

Serviço da dívida <br>compromete o presente<br> e o futuro do País

Carlos Carvalhas

Com a en­trada no euro e com as re­gras di­tadas pela Ale­manha de que o BCE não fi­nan­ci­aria os es­tados, o nosso País não só foi pe­na­li­zado por uma moeda muito va­lo­ri­zada em re­lação à es­tru­tura da eco­nomia, como voltou à si­tu­ação do sé­culo XIX, isto é, ficou to­tal­mente de­pen­dente dos ditos mer­cados para se fi­nan­ciar. Ora os mer­cados – grandes bancos, com­pa­nhias de se­guros e fundos de apli­cação de ca­pi­tais – es­pe­culam e pro­curam ga­nhar o má­ximo com as suas apli­ca­ções.

O «Ma­ni­festo dos 70», em­bora com pro­postas muito re­cu­adas, teve o mé­rito de pela voz de vá­rios qua­drantes afirmar que a dí­vida não é sus­ten­tável e que é pre­ciso re­ne­gociá-la

É o que têm feito com o nosso País, que de­sig­na­da­mente de­pois de 2007 se viu con­fron­tado com taxas de juros agi­otas porque os «mer­cados» pe­rante a es­cassez de li­quidez, sa­bendo da de­pen­dência ab­so­luta dos países da União Eu­ro­peia para se fi­nan­ci­arem e co­nhe­cendo as nossas fra­gi­li­dades foram es­pe­cu­lando exi­gindo taxas de juro in­com­por­tá­veis. A nossa dí­vida pú­blica, que antes da crise es­tava ao nível da Ale­manha e da média da União Eu­ro­peia, foi su­bindo em flecha em con­sequência das er­radas res­postas à crise; da pas­si­vi­dade e cum­pli­ci­dade dos grandes países da UE com os ditos mer­cados e a re­cusa do BCE em abrir, pelo menos, uma ex­cepção pe­rante a crise fi­nan­ci­ando os es­tados, como acon­tece com o Banco do Japão, da In­gla­terra ou a FED nos EUA. Mas a dí­vida cresceu as­sus­ta­do­ra­mente também porque o sis­tema fi­nan­ceiro com o apoio dos seus go­vernos (Só­crates e Bar­roso) tem es­tado a pro­curar re­solver o seu de­sen­di­vi­da­mento e ca­pi­ta­li­zação à custa da vida pú­blica. É a re­so­lução da dí­vida ban­cária (pri­vada), à custa do Or­ça­mento do Es­tado (dí­vida pú­blica), isto é, dos con­tri­buintes. É bom lem­brar que, se em 2008, a dí­vida pú­blica por­tu­guesa em per­cen­tagem do PIB es­tava ao nível da média da União Eu­ro­peia, já a dí­vida pri­vada, quer a das so­ci­e­dades não fi­nan­ceiras, quer fi­nan­ceiras, era muito su­pe­rior à média da União Eu­ro­peia. Mas sobre a dí­vida pri­vada e de­sig­na­da­mente do sis­tema ban­cário con­tinua a pre­va­lecer o pacto de si­lêncio.

Hoje todos re­co­nhecem que o ser­viço desta dí­vida pú­blica é um fardo pe­sa­dís­simo que com­pro­mete o pre­sente e o fu­turo do País por lon­guís­simos anos. O PCP, as­su­mindo as suas res­pon­sa­bi­li­dades, tomou a ini­ci­a­tiva de de­fender pu­bli­ca­mente a re­ne­go­ci­ação da dí­vida. Es­teve so­zinho na As­sem­bleia da Re­pú­blica e só mais tarde foi acom­pa­nhado pelo Bloco. Du­rante muito tempo o Go­verno e os co­men­ta­dores de ser­viço ou pro­cu­raram ig­norar a nossa pro­posta ou a con­si­de­raram ino­por­tuna, porque se­gundo eles o País tinha que mos­trar pri­meiro que cum­pria os com­pro­missos da troika. Ou ainda, com má fé e de­so­nes­ti­dade in­te­lec­tual ar­ru­mavam sis­te­ma­ti­ca­mente a questão afir­mando que o PCP sim­ples­mente não queria pagar a dí­vida ou que tal pro­posta sig­ni­fi­cava a saída do euro. Che­garam a afirmar que a re­es­tru­tu­ração seria um de­sastre, mas mais à frente fi­zeram uma re­es­tru­tu­ração pri­meiro ao nível dos juros e de­pois ao nível dos prazos, à bo­leia da Grécia e da Ir­landa. Mas foram re­es­tru­tu­ra­ções ex­tre­ma­mente li­mi­tadas.

Quanto à opor­tu­ni­dade de que fa­lavam, é hoje uma evi­dência que o País es­tava então em muito me­lhores con­di­ções – eco­nó­micas, so­ciais e fi­nan­ceiras para re­ne­go­ciar a dí­vida, que no es­sen­cial era de­tida por es­tran­geiros. Es­tá­vamos também numa al­tura em que o euro so­fria forte con­tes­tação e em que a srª Merkel com elei­ções à vista não es­tava em con­di­ções de deixar cair ne­nhum país da União Eu­ro­peia! Hoje as con­di­ções são pi­ores in­clu­si­va­mente porque o mon­tante da dí­vida é muito mais ele­vado e porque uma parte sig­ni­fi­ca­tiva desta está na mão de ins­ti­tui­ções e da banca na­ci­onal!

Falsos ar­gu­mentos

Quais são ac­tu­al­mente os prin­ci­pais ar­gu­mentos contra a re­ne­go­ci­ação da dí­vida? Há quem afirme que para haver re­ne­go­ci­ação é ne­ces­sário con­vencer os cre­dores a acei­tarem re­ne­go­ciar. Esta é uma falsa questão. É fácil de­mons­trar que a dí­vida é im­pa­gável, a não ser que se trans­forme a mai­oria dos por­tu­gueses em es­cravos. Por isso, a questão não está em con­vencer os cre­dores, mas em tomar a ini­ci­a­tiva com cla­reza e de­ter­mi­nação. O nosso País com um go­verno pa­trió­tico teria voz, razão e força para exigir uma re­ne­go­ci­ação res­pon­sável ao ser­viço do povo e do País. Na­tu­ral­mente, se con­se­guir uma po­sição con­junta com ou­tros países, deve fazê-lo.

Um outro ar­gu­mento, é o de que a dí­vida por­tu­guesa é pa­gável e sus­ten­tável! Assim há quem afirme: a dí­vida é sus­ten­tável, pois «se não o fosse os cre­dores pri­vados não es­ta­riam dis­postos a em­prestar ao Es­tado a 4,5% a 10 anos». Este é outro falso ar­gu­mento. Os cre­dores em­prestam porque sabem que os juros são bons e que se Por­tugal não pagar pa­gará a União Eu­ro­peia! É por isso que os mer­cados também têm em­pres­tado à Grécia, à Es­panha, à Itália e à Ir­landa. De­pois de Mário Draghi ter as­su­mido, em Julho de 2012, que o BCE tudo faria para pre­servar o euro, a questão do «de­fault» de tal ou tal país foi la­te­ra­li­zada. Por isso é que a co­lo­cação dos nossos em­prés­timos têm tido sempre uma pro­cura su­pe­rior à oferta, tal como tem acon­te­cido com os ou­tros países en­di­vi­dados. Juros altos e re­em­bolso ga­ran­tido é o que qual­quer credor de­seja.

Há ainda quem ba­seie a sua afir­mação de que a dí­vida é sus­ten­tável com ar­gu­mentos falsos mas mais quan­ti­ta­tivos, avan­çando com dados sobre o cres­ci­mento da eco­nomia e saldos pri­má­rios or­ça­men­tais, em­bora ma­ni­fes­ta­mente ir­re­a­listas. É o caso da troika e do FMI, que apre­sentam dados – que não são se­quer pre­vi­sões – to­tal­mente fan­ta­si­osos, sobre a evo­lução da eco­nomia por­tu­guesa, como já foi de­mons­trado por vá­rias en­ti­dades e eco­no­mistas e por Oc­távio Tei­xeira, nas jor­nadas par­la­men­tares do PCP.

Também o pri­meiro-mi­nistro, não po­dendo con­ti­nuar a fazer como a sua mi­nistra das Fi­nanças – que afirma e re­pete pura e sim­ples­mente que a dí­vida é sus­ten­tável sem qual­quer de­mons­tração –, avançou com um mo­delo de cres­ci­mento no­minal anual de 2,5% (1,5% real com a in­flação de 1%) com um ex­ce­dente pri­mário de 1,8% do PIB e com uma taxa im­plí­cita da dí­vida na ordem dos 3,8%, afir­mando que com estes pres­su­postos menos exi­gentes re­du­ziria a dí­vida ao nível do acor­dado em Ma­as­tricht! Como já foi de­mons­trado, com estes dados apre­sen­tados pelo pri­meiro-mi­nistro, para a dí­vida chegar aos 60% do PIB – ob­jec­tivo de Ma­as­tricht – se­riam ne­ces­sá­rios 70 anos! Se­tenta anos (2084) de aus­te­ri­dade e de le­targia, eis o que nos propõe o fan­tás­tico pri­meiro-mi­nistro! Com uma taxa média de cres­ci­mento real de 1,5% Por­tugal con­ti­nu­aria a manter taxas de de­sem­prego ina­cei­tá­veis. De­pois man­tendo a aus­te­ri­dade di­tada pelo Tra­tado Or­ça­mental di­fi­cil­mente se ob­teria mesmo a mo­desta média anual de cres­ci­mento de 1,5%. Não há aus­te­ri­dade ex­pan­si­o­nista. Esta é também uma questão a que o se­cre­tário-geral do PS foge sis­te­ma­ti­ca­mente a res­ponder, e quando afirma que a re­po­sição dos ren­di­mentos dos por­tu­gueses seria gra­dual, de­fen­dendo ao mesmo tempo o «ce­sa­rismo bu­ro­crá­tico» do Tra­tado Or­ça­mental que nos impõe doses acres­cidas de aus­te­ri­dade, está também a dizer que tal gra­du­a­lismo não teria fim! A sua «di­ver­gência in­sa­nável» é cada vez mais formal e mostra-se tão ir­re­vo­gável como a do outro!

Ainda em re­lação à re­ne­go­ci­ação da dí­vida e no quadro do magno pro­blema de se saber se Por­tugal deve ter uma saída dita à ir­lan­desa ou as­sis­tida, como se esse é que fosse o grande pro­blema, o Pre­si­dente da Re­pú­blica veio também dar uma res­posta in­di­recta sobre a sus­ten­ta­bi­li­dade da dí­vida, even­tu­al­mente para mais tarde também poder dizer – no es­tilo de con­se­lheiro Acácio – que ele já tinha lem­brado, por ab­surdo, que a dí­vida era im­pa­gável. Na ver­dade Ca­vaco Silva o que diz é que a aus­te­ri­dade vai con­ti­nuar mos­trando também por ab­surdo que num ce­nário de cres­ci­mento no­minal do PIB e taxas de juro de 4% e com um ex­ce­dente pri­mário de 3% a dí­vida só re­gres­saria a 60% do PIB em 2035. O Pre­si­dente da Re­pú­blica também não vê outra so­lução senão a con­ti­nu­ação da aus­te­ri­dade para lá de 2035. Grande Pre­si­dente da Re­pú­blica, sempre com­pro­me­tido com a Banca, com os grandes in­te­resses e com este Go­verno e sempre tão pre­o­cu­pado a ver se fica bem na fo­to­grafia!

Con­dição ne­ces­sária
mas in­su­fi­ci­ente

Para se ter uma noção do re­a­lismo das pro­jec­ções que temos aqui men­ci­o­nado, basta lem­brar que a taxa de cres­ci­mento média anual desde que Por­tugal en­trou para o euro é de 1,5% ne­ga­tivos! Um de­sastre. De­pois, como se sabe não há cres­ci­mento sem in­ves­ti­mento, ora o in­ves­ti­mento pú­blico e pri­vado está em queda há vá­rios anos, num nível in­fe­rior ao dos anos 90. No campo dos que se opõem à re­ne­go­ci­ação da dí­vida de forma di­recta ou in­di­recta, há ainda os ban­queiros, res­pec­tivos ac­ci­o­nistas e os que gra­vitam à sua volta com o re­ceio de que a re­ne­go­ci­ação também os atinja. Uti­lizam ar­gu­mentos in­te­res­seiros ou pura e sim­ples­mente dizem que a dí­vida não deve ser ne­go­ciável, porque não, ponto final.

Nos úl­timos tempos ti­vemos também a apre­sen­tação de uma pe­tição sobre a re­ne­go­ci­ação da dí­vida em que no es­sen­cial es­tamos de acordo e o «Ma­ni­festo dos 70». O «Ma­ni­festo dos 70», em­bora com pro­postas muito re­cu­adas, teve o mé­rito de pela voz de vá­rios qua­drantes afirmar que a dí­vida não é sus­ten­tável e que é pre­ciso re­ne­gociá-la! Em re­lação a este «Ma­ni­festo» há re­ac­ções que são po­li­ti­ca­mente sig­ni­fi­ca­tivas:

Ti­vemos o re­púdio de um ban­queiro que em pú­blico não «aguentou» ficar sen­tado e aplaudiu de pé Passos Co­elho, quando este se re­feriu aos que as­si­naram a pe­tição «por essa gente»;

Ti­vemos o pri­meiro can­di­dato do PSD às elei­ções para o Par­la­mento Eu­ropeu a so­le­trar e a mar­telar sí­laba a sí­laba o vo­cá­bulo ino­por­tuno! Re­parem que ele não disse que não era ne­ces­sária a re­ne­go­ci­ação ou que não era justa. Ficou-se pelo i-no-por-tu-no. Que­rerá dizer que noutra al­tura será opor­tuno?

Ti­vemos o can­di­dato do PS ao Par­la­mento Eu­ropeu, sempre tão «pa­la­vroso» e que, tanto quanto se saiba, até hoje não disse nada sobre o «Ma­ni­festo». Tirou umas fé­rias sa­bá­ticas! É o que se chama pro­curar passar por entre os pingos da chuva!

E ti­vemos o se­cre­tário-geral do PS, que em­bora es­pe­ci­a­lista nas am­bi­gui­dades sempre pre­ce­didas do: «eu quero dizer com cla­reza», optou pelo si­lêncio, fi­cando o PS com um pé dentro, através das as­si­na­turas de al­guns des­ta­cados mi­li­tantes, e com um pé fora, através do não com­pro­me­ti­mento da sua di­recção! A mesma am­bi­gui­dade com que a certa al­tura passou a de­fender a di­mi­nuição do ser­viço da dí­vida através do alar­ga­mento dos prazos e da di­mi­nuição das taxas de juro sem chamar o boi pelos nomes, re­ne­go­ci­ação da dí­vida, para que não se diga que foi a re­boque de co­mu­nistas e blo­quistas.

A re­ne­go­ci­ação e re­es­tru­tu­ração da dí­vida com a di­mi­nuição sig­ni­fi­ca­tiva do seu ser­viço – o que passa pela di­mi­nuição da taxa de juros, alar­ga­mento dos prazos mas também dos seus mon­tantes – é uma con­dição ab­so­lu­ta­mente ne­ces­sária para que o País se possa li­vrar desta gan­grena e con­se­guir taxas de cres­ci­mento sig­ni­fi­ca­tivas. Mas não é su­fi­ci­ente, é ne­ces­sário uma rup­tura com a po­lí­tica que vem sendo se­guida e afrontar os grandes in­te­resses. Mas mesmo em re­lação à dí­vida de­pois de re­ne­go­ciada o País de­verá es­ta­be­lecer que o ser­viço da dí­vida anual nunca de­verá ul­tra­passar uma per­cen­tagem a de­finir das suas ex­por­ta­ções e do seu cres­ci­mento eco­nó­mico.

A questão da re­dução subs­tan­cial do ser­viço da dí­vida é uma questão da má­xima ur­gência que quanto mais cedo for co­lo­cada me­lhor e mais fácil será para o País. Os que de­fendem ver­da­dei­ra­mente os in­te­resses do povo e do País não são os que com re­ló­gios de cuco anun­ciam que vamos con­ti­nuar com a troika sem troika, ao ser­viço dos ban­queiros e dos grandes se­nhores do di­nheiro, mas aqueles que com fir­meza e de­ter­mi­nação lutam para que Por­tugal se li­berte não só da troika es­tran­geira mas também da sua po­lí­tica, que se li­berte do Tra­tado Or­ça­mental e de uma po­lí­tica di­tada pelos in­te­resses da se­nhora Merkel e do di­rec­tório das grandes po­tên­cias. Uma po­lí­tica não ao ser­viço dos plu­to­cratas e oli­garcas mas sim ao ser­viço dos tra­ba­lha­dores e do povo, ao ser­viço de um Por­tugal de­mo­crá­tico, livre, so­be­rano e in­de­pen­dente.


In­ter­venção no Co­ló­quio Re­ne­go­ciar a dí­vida – de­fender o Povo, de­fender o País pro­mo­vido pelo PCP a 25 de Março na As­sem­bleia da Re­pú­blica.

Tí­tulo e sub­tí­tulos da res­pon­sa­bi­li­dade da Re­dacção.